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À saída do grande confinamento a que a pandemia da covid-19 obrigou o mundo inteiro, em O tempo das Igrejas vazias, o pensador católico checo Tomás Halík identificou as igrejas fechadas e vazias como sinal de alarme profético para aquilo em que a Igreja se poderá tornar: fechada e vazia, precisamente. Sinal de alarme, porque antecipa o seu estado permanente num futuro próximo – em alguns lugares da Europa, já é realidade –, se não levar a sério os desafios da nova era emergente, a mudança de tempo em curso, como se lhe tem referido o Papa Francisco, que é mais do que um ordinário tempo de mudança. Ainda que com variações de ritmos e diferenças entre lugares geográficos, como tendência de fundo, fechada e vazia, parece ser o que espera à Igreja se não souber lidar com tais desafios, tanto do ponto de vista intelectual como de ação, se não se determinar a uma profunda transformação não só das estruturas eclesiais mas também da dimensão existencial e espiritual da fé. Sinal de alarme profético, porque o drama da perda de pessoas, de relevância e de credibilidade e a crise gerada pelo vazio de espaços e de ritos, de práticas e de conceitos oferece-se, hoje, como tempo oportuno para instaurar processos significativos de verdadeira conversão espiritual e de profunda reforma eclesial.
Em A tarde do cristianismo. O tempo da transformação, recentemente publicado em língua portuguesa, T. Halík retoma o mesmo sinal de alerta da crise que afeta o cristianismo, para explorar o seu alcance profético. Enquanto limiar de uma nova época para o cristianismo, apresenta-se como oportunidade de transformação para a Igreja. Qual será o futuro do cristianismo e que forma poderá tomar a Igreja do futuro, é a interrogação que lança.
Para clarificação terminológica, podemos entender por forma «um conjunto, o mais possível unificado, de convicções, de ações, de sensibilidades, de leis, através das quais seja possível viver autenticamente o Evangelho», segundo a definição de Ghislain Lafont, beneditino francês, falecido em 2021. Ora, o que está em jogo desde o Concílio Vaticano II, recorrendo ainda à análise de Lafont, é que «ainda não encontrámos a “forma” que nos possa permitir avançar de modo mais livre e expedito». Aquela dentro da qual nos compreendemos e interagimos com a realidade – chamemos-lhe forma “gregoriana”, “tridentina” ou “romana” –, «certamente venerável e que produziu os seus frutos», deixou de estar «adaptada à conjuntura presente». Daí que, talvez mais do que atualizá-la, importe «“dar à luz” uma forma nova». Sem rodeios, T. Halík adverte «que a renovação genuína da Igreja não surgirá nas secretárias dos bispos, nem em concílios ou conferências de especialistas, mas pressupõe poderosos impulsos espirituais, profunda reflexão teológica e coragem para experimentar» (p. 103). Ainda assim, quando a Igreja Católica está atualmente implicada, a nível mundial, no Sínodo sobre comunhão, participação e missão – que o Papa entendeu, agora, prolongar por mais um ano, até 2024 – é essa mesma urgência de uma forma futura de Igreja que, de algum modo, está a assumir, para que esteja à altura da força espiritual do Evangelho e da exigência da missão de o anunciar no tempo presente. Ora, o mais recente livro de Halík vem dar um contributo muito relevante para esta causa. Pelo menos, é assim que o lemos e, por isso, lhe fazemos eco.
O que entender por tarde do cristianismo como tempo propício para a sua transformação? A expressão é tomada de Carl Gustav Jung (1875-1961), psicoterapeuta suíço, que compara a dinâmica da vida humana individual ao curso de um dia: a manhã corresponderia à juventude e ao início da idade adulta; o meio-dia, ao período da crise em que se põe em causa o que antes estava seguro e se deixa de desfrutar do que anteriormente dava satisfação; a tarde, à idade madura e à velhice. Aplicadas as três epatas à história do cristianismo, Halík faz corresponder a manhã ao período que vai dos seus primórdios ao limiar da modernidade, «um longo tempo, diz o autor, em que a Igreja construiu as suas estruturas institucionais e doutrinais» (p. 62). Segue-se-lhe a crise do meio-dia, «que abalou estas mesmas estruturas». Trata-se de um período longo, que «tem durado, com intensidade variável, em diferentes países desde a Idade Média tardia até ao período moderno, desde o Renascimento e Reforma, o cisma dentro do Cristianismo ocidental e as guerras subsequentes que desafiaram a credibilidade de várias denominações, passando pelo Iluminismo, o período da religião e a ascensão do ateísmo, até chegar a este período da lenta metamorfose do ateísmo em subsequente apateísmo – a indiferença religiosa» (pp. 62-63). A tarde é a etapa em que estamos a entrar, quando for superado o maior impacto da crise do meio-dia, «em busca de um novo lar e de novas formas de expressão numa sociedade pluralista pós-moderna e pós-secular» (p.149). Sim, a tarde pode sugerir «proximidade da noite», «extinção e morte», como se fosse a etapa que antecede o fim, reconhece-se nas últimas linhas do livro. Porém, esclarece Halík, «de acordo com o conceito bíblico de tempo, um dia novo começa com a noite anterior» (p. 305). É assim que no final deste longo período de crise, “como a primeira estrela no céu noturno”, já se entreveem traços capazes de dar nova forma promissora ao cristianismo. Por exemplo, quando a fé, mais madura e mais humilde, se mostra capaz de levar a sério, de abraçar e de integrar a experiência de escuridão e de vazio pela perda de centralidade, de comando e de seguranças causada pelas crises do meio-dia, sabendo que essa mesma experiência de morte é íntima ao Evangelho e que atesta a verdade de uma aventura espiritual; quando reconhece que a secularização não é o fim da religião nem da fé cristã, mas, antes, a transformação do significado que se tornou mais comum, eminentemente social, político e cultural, de sistema de narrações, de rituais e de símbolos que expressam e cimentam a identidade de uma sociedade – o que se perde, afinal, faz-se possibilidade de renovada autenticidade evangélica e de outros modos de compreender o papel da religião e o alcance da fé cristã; quando rejeita ser confundida com uma qualquer ideologia identitária ou com um qualquer esoterismo vago; quando assume o exercício da contínua leitura dos sinais dos tempos, perscrutando o alcance espiritual da fisionomia humana, das suas expressões culturais e artísticas e das grandes interrogações e buscas dos homens e mulheres de hoje; quando assume que o quadro das democracias liberais não é menos propício para a sua identidade e missão do que outros sistemas políticos em que, supostamente, se deu melhor no passado; quando aprende a lidar de modo são com a alteridade, a diferença e a pluralidade daqueles a quem se dirige, superando a suspeita doentia do carácter indevido de tudo o que é novo, sem que tenha que ceder, com isso, ao fascínio superficial e acrítico pelas modas de cada instante.
Alerta, porém, T. Halík que «esta forma vespertina de Cristianismo – como todas as suas formas anteriores, aliás – não será engendrada nem produzida por qualquer lógica impessoal e irreversível de desenvolvimento histórico». Não estamos, por isso, perante uma necessidade que se realizará, queiramos ou não. Pelo contrário, apresenta-se como kairós, «uma oportunidade que chega e que em algum momento se oferece, mas que será apenas cumprida quando as pessoas a compreenderem e aceitarem livremente» (p. 63). Implica tomada de consciência e determinação livre. Em linguagem inaciana, trata-se de uma eleição, de uma escolha que torna necessárias ações consequentes. Nesta tarde em que estamos, existe, por isso, o risco de “envelhecer mal”, isto é, de não reconhecer e de não agarrar o carácter favorável do nosso tempo e dos seus movimentos mais vitais. Acontecerá se, de forma imprudente e superficial, se negar ou abafar a vida tal como se apresenta existencial e culturalmente e se se quiser resolver a crise através de meras alterações exteriores de «algumas estruturas institucionais» ou de uns «quantos parágrafos do Catecismo, do Código de Direito Canónico ou de textos morais» (p.10), sem implicar o fundo espiritual, teológico e religioso do ato de fé e das práticas cristãs. Nesse caso, os resultados serão superficiais e confusos. Mais gravoso será ainda assumir atitudes de defesa e de hostilidade, na convicção de que ser fiel passa por reproduzir o passado “exemplar” anterior à crise do meio-dia. Como ilustração paradigmática deste modo de ser está a feroz e infeliz luta antimodernista, de meados do século XIX até meados do século XX, durante a chamada “era pia”, por ir do Papa Pio IX ao Papa Pio XII. Como então a Igreja se entrincheirou e perdeu presença e capacidade de diálogo com a cultura filosófica, científica e artística do tempo, hoje, correria o risco de «produzir uma forma estéril e repulsiva de Cristianismo» (p. 63). Reconhece Halík que, se a Igreja fosse, de facto, «incapaz de oferecer uma forma de Cristianismo diferente do da manhã» ou se vivesse na saudade desses tempos e de «tentativas de reconstruí-la ou de imitá-la», não surpreenderia que muitas pessoas acreditassem que «a única alternativa» seria mesmo «abandonar o Cristianismo e a fé» (p. 297). Se o que vive e se o que tem para oferecer não for reconhecido como bem existencial sensato e significativo para a vida de pessoas e de comunidades reais e se não for capaz de entrar criativamente no tecido cultural no qual hoje se sentem, se compreendem e se exprimem, acabará por ser identificada e, na maior parte dos casos, rejeitada, como prática devocional irrelevante, rito religioso ou ideal moral separado, ideologia identitária para afirmação ou aproveitamento político. Neste sentido, o clericalismo, o fundamentalismo, o integrismo ou o triunfalismo, que tendem a exibir uma autorreferencialidade exterior e superficial, serão formas incapazes de sustentar a opção da fé que, para ser verdadeira, terá de se apresentar e ser reconhecida, hoje, como caminho “vivível” e visível de densidade existencial e de vitalidade espiritual.
Com a crise, o tempo de mudanças históricas que vivemos oferece futuro ao cristianismo, saiba a Igreja aceitar com paz, sem negar o custo, que uma longa era da sua história está a terminar e que a necessidade de uma nova forma que esteja à altura da sua identidade mais íntima e da sua missão de anunciar o Evangelho de Jesus passará, inevitavelmente, por exigentes trabalhos de parto. Parafraseando o beneditino alemão Elmar Salmann, no nascimento como em tantos outros inícios significativos, há sempre muita coisa que morre, assim como, em processos de morte, há muita coisa que nasce. De resto, é esta a história do cristianismo, desde o seu início. Com a herança que se recebe, vem sempre o custo de lhe dar uma fisionomia particular, segundo a particularidade dos tempos e dos lugares. A gratidão e a fidelidade pedem apropriação, diferenciação, tradução, risco. Se é assim, na esteira do Vaticano II, no universo de ideias e de conceitos, de expectativas e de práticas que dão forma à força espiritual de que vive a Igreja, há que continuar a fazer caminho sereno, paciente e corajoso de identificação daquilo que deve ser conservado e daquilo que deve ser deixado, daquilo a que de mais essencial a Igreja se deve consagrar e daquilo que de supérfluo pode e deve sacrificar. O exercício pede tempo e cuidado, na medida em que, como adverte o teólogo italiano Pierangelo Sequeri, errar na matéria de consagração e de sacrifício tem efeitos trágicos, porque o coração perde-se ou salva-se naquilo que reconhece como seu tesouro.
A dor da morte irá correspondendo ao nascimento de outra forma e de outro estilo de Igreja – não se trata de outra Igreja, mas de outra forma de Igreja: nem sempre a Igreja foi “gregoriana”, “tridentina” ou “romana” – que, em muitos aspetos, neste momento, ainda só poderemos pressentir e entrever. Sabemos que vão morrendo formas do passado – Igreja de estado e de poder, Igreja jurídica, Igreja sacral, Igreja burguesa – e ainda não vemos claro que outra forma deverá e poderá ir tomando no presente, de modo que tenha futuro. Ainda assim, T. Halík arrisca avançar quatro traços enformadores de uma nova forma de Igreja e de cristianismo com futuro. Antes de mais, que a Igreja se compreenda como povo de Deus na história, portanto, em movimento, em processo. Como afirma o Papa Francisco, em Fratelli Tutti, n. 160, citado por Halík, «um povo vivo, dinâmico e com futuro é aquele que permanece constantemente aberto a novas sínteses, assumindo em si o que é diverso. E fá-lo, não se negando a si mesmo, mas com a disposição de se deixar mover, interpelar, crescer, enriquecer por outros; e, assim, pode evoluir» (p. 271). Em segundo lugar, que seja escola de vida e de sabedoria, à luz da ideia original das universidades medievais, «criadas como comunidades de professores e de alunos» (p. 271), comunidades «de vida, de oração e de aprendizagem», capazes de sustentar uma fé pensada e madura a nível intelectual e moral, mas também terapêutico, na medida em que protegem da intolerância, do fundamentalismo ou do fanatismo. Depois, que se realize como hospital de campanha, traduzindo a apetência e a disposição da Igreja para ir «com sacrifício e coragem para os lugares onde as pessoas se encontram física, social, psicológica e espiritualmente feridas, tentando fazer curativos e sarar feridas (pp. 274-275). Tal presença implica saber fazer bons diagnósticos, assinalar-se na «arte de ler e interpretar os sinais dos tempos», na «hermenêutica teológica dos acontecimentos na sociedade e na cultura», com especial atenção para os «momentos de crise e de mudanças de paradigmas culturais» (p. 275). Por fim, que seja lugar de encontro e de diálogo. Para isso, «a Igreja precisa de voltar a ser comunidade em caminho, aprofundando o carácter peregrino da fé», e de construir centros espirituais vivos, «onde seja possível extrair coragem e inspiração para a jornada que se avizinha» (p.281).
Quando se torna claro para a Igreja que o cristianismo que está a viver o fim de uma época e que os riscos de naufrágio são reais, quanto mais não fosse pela irrelevância existencial e cultural, pela “guetização” ou por novas e dolorosas fraturas internas, procurar interpretar a metamorfose epocal e colocar, como faz T. Halík, a questão da forma que poderá tomar no futuro é um ato de responsabilidade eclesial. Que seja capaz de realizar uma fé existencialmente adulta e espiritualmente significativa, em contacto vivo e qualificado com as fibras mais elementares da vida, com a Escritura, a Tradição e os sinais espirituais dos tempos; que se assinale pela humildade e se modele pelo olhar que vem do que é marginal, do que é mais periférico, do que é precário; que se determine pelo compromisso com o que salvaguarda e eleva a vida, sobretudo dos mais frágeis – também da criação; que enforme as práticas rituais, o pensamento teológico e as estruturas institucionais com categorias dinâmicas e processuais, são traços que, no “estado atual da arte”, já se vão revelando significativos para uma nova forma eclesial.
«Se o mistério da Encarnação prossegue na história do Cristianismo, então devemos estar preparados para que Cristo continue a entrar criativamente no corpo da nossa História, em diferentes culturas – e a entrar muitas vezes com a mesma descrição e anonimato com que entrara outrora num estábulo em Belém» (p. 298). Por ser dezembro, oferecemos aos nossos leitores “O delírio do verbo: ensaio sobre o mistério da encarnação”, de João Maria Carvalho. Temas que abordamos neste número como a prevenção do fenómeno da corrupção, a salvaguarda jurídica da dignidade humana na prática da prostituição ou a tomada de consciência da gravidade da culpa e do excesso do perdão no caso dos abusos sexuais na Igreja, podendo não parecer, são motivos natalícios. A carne viva da humanidade que partilhamos é o lugar da encarnação do Verbo. Com a sua paixão luminosa e dolorosa, é a custódia em que o Santíssimo se expõe. Aí será reconhecido, mais não seja, como fio de luz a atravessar pequenas fendas. Votos de Santo Natal.