Ainda há bem poucas semanas, os calores do início de Verão faziam-se sentir como um apelo a férias e a descanso. Em breve, outros “calores” se levantarão com a abertura dos Jogos Olímpicos, em Paris, a XXXIII Olimpíada da era moderna. Que tem uma coisa a ver com a outra? Tanto a atividade desportiva como o lugar e o tempo de descanso fazem parte do complexo poliedro que é cultura.
Nem todas as férias são descanso. Até há quem não tenha férias. Nem todo o desporto, atividade ou espetáculo fazem descansar. Aliás, o descanso também é atividade. Uma coisa é certa, desporto e descanso pedem sabedoria na gestão dos tempos e dos modos de estar com equilíbrio consigo mesmo e com os outros, na construção do futuro.
O equilíbrio no agir tal como a vida são difíceis.
Há dois aspetos socioculturais do agir olímpico e da realização dos Jogos que, pela sua lendária característica e pelo seu desafio, vale a pena recordar e considerar. O primeiro é a assim chamada “trégua olímpica”: a intenção e a decisão de que a grande competição atlética entre gregos, em Olímpia (entre os séculos VIII a.C. e V d. C.), fosse ocasião e causa de paz. O segundo aspeto diz respeito à tensão entre ideais: o amadorismo e o profissionalismo. O debate sobre esta tensão e o seu possível equilíbrio, próprio das culturas contemporâneas, tem mais a ver com os “Jogos da era moderna”, ou seja, com as Olimpíadas refundadas pelo Barão Pierre de Coubertin, ainda no século XIX, as primeiras em Atenas, 1896.
A “trégua olímpica”, ao que parece, permaneceu como respeitável tradição “lendária”. A organização dos Jogos exigia um pacto entre as Cidades-Estado concorrentes de pararem todas as guerras e conflitos entre elas, desde sete dias antes dos jogos até sete dias depois. As Olimpíadas adquiriam, assim, também, a função social de reencontro e de superação de conflitos entre as cidades-irmãs, tantas vezes desavindas e em luta. Seriam, pois, tempo de descanso. Haveria sabedoria e diálogo ao transferir a guerra violenta para a luta “desportiva” no Estádio, com regras entre os heróis em concurso, sob o famoso lema: citius, altius, fortius. Ou seja, mais rápido, mais alto, mais forte.
Pierre de Coubertin, ao fundar o Comité Olímpico Internacional (COI 1894), renovava o ideal de superação de “muitas guerras” por uma competição disciplinada entre todos os continentes, simbolizados nas cinco argolas da bandeira olímpica. Cada país, com os seus atletas em despique, seria chamado a uma internacionalização respeitadora e fraterna sob o novo ideal proposto. Nas palavras de Coubertin, “o que importa não é vencer, mas participar. O essencial não é ter vencido, mas ter lutado bem”.
Sobre o segundo tema, o do amadorismo e do profissionalismo, o ideal pedagógico do desporto e das atividades lúdicas como parte integrante da educação, sob a divisa clássica da mens sana in corpore sano, vai sendo abalado e esquecido por interesses mesquinhos como são o elitismo, a riqueza fácil, a promoção social, por escolas sem horizonte humanista, por clubismos doentios, entre outros, que abrem a porta à violência, à mentira e à corrupção. Ferem a competição saudável. Esse “desporto”, visto ou praticado, não pode dar descanso.
O amadorismo puro, desejado pelo Barão de Coubertin, poderia ser demasiado idealista. Mas o atleta profissional em exclusividade e a tempo inteiro corre perigo. Convém que haja mais vida para além disso. O fabrico de campeões, na busca de sucesso e de riqueza, é enganador, também por ser para poucos e de curta duração. O encantamento por um lugar no pódio é compreensível, mas deve ser acompanhado por uma “mente sã” que saiba perder e reconhecer com alegria o valor do adversário. Penso que o verdadeiro desportista deveria poder cultivar outros interesses e até outra profissão. Quem lhe dá condições para isso? Antes e para além do desporto-espectáculo, o desporto-cultura deveria fazer parte da escola das artes.
Para concluir, enuncio ainda três breves temas culturais: o desporto e a escola, o ócio e o negócio, o tempo livre e o espaço de liberdade.
Voltemos à cultura clássica grega. Aristóteles ensinava os discípulos enquanto passeava com eles, conversando “peripateticamente” pelos campos. Esse espaço e esse tempo para aprender e crescer em liberdade e gratuidade chamava-se “ócio”, tradução correta do grego “scholé” (“escolé”) donde vem também a nossa palavra “escola”. O negócio, o não-ócio, indicaria as outras actividades e trabalhos, mais por necessidade e mediante retribuição – neste quadro, poderemos questionar-nos se a escola e o desporto não se têm tornado mais negócio do que ócio. Também a palavra e o conceito “desporto” (os brasileiros usam o termo “esporte”) significam atividade “sem-porte”, isto é, gratuita, vivida por amadorismo, como deveriam ser as artes e as ciências, sujeitas a corrupção quando exercidas para ganhar fama e dinheiro. Utopia ou desafio? Quem age apenas pelo sucesso e pela riqueza não participa, dificilmente tem espírito de equipa e não encontra descanso.
O descanso, mais ou menos vivido, vem do modo como estamos com os outros, connosco próprios e com os nossos talentos, e com a natureza, no agir e na contemplação. Ele vem de tudo isto, a que cabe dar tempo e sentido.
Dar mais atenção a conceitos e a palavras como des-canso e des-porto poderá ser uma boa prática: agir sem cansar, agir sem porte.
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